ANDRÉA catrópa
Filme "Vazante" - 2016
"Nós somos frutos de uma sopa. Onde é que o Brasil foi cozido? Num tripé. O que é que tinha nessa sopa? Tinha extrativismo. Uma sociedade inteira cuja economia foi estruturada no extrativismo. A gente não foi colonizado por famílias de agricultores que vieram aqui e se assentaram. A gente foi sempre uma empresa de extrativistas que vinham para cá tirar do País e levar para fora. (...) A outra perna desse tripé foi o patriarcalismo. Ou seja, o poder ilimitado do homem. Do homem que tem o capital. Essa pessoa reinou e ainda reina no Brasil. (...) E a outra perna foi o escravismo, que de certa forma foi como se estruturou a economia. No Brasil, a economia se organizou com o trabalho escravo. Dessa sopa não podia sair coisa muito boa porque ela é só violência."
(Daniela Thomas, trecho de entrevista ao HuffPost Brasil)
Será que, após tanta polêmica, é possível assistir a Vazante pelo que o filme traz, e não por suas faltas? Em primeiro lugar, dois comentários gerais sobre ele: 1) Daniela Thomas ocupa a posição minoritária de ser uma diretora mulher; 2) o filme é arriscado e desafia um mercado crescente de trabalhos que infantilizam o espectador.
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É traço da cultura contemporânea instabilizar setores que, até a segunda metade do século XX, ainda se mantinham um tanto estanques. Em relação ao cinema, havia uma separação clara entre blockbusters e "filmes de arte", de maneira que dificilmente uma obra fosse observada fora dessas classificações. Filmes de heróis, por exemplo, tinham espaço nos anúncios publicitários e menção nas programações das salas, sem que atingissem o status necessário para receberem comentários críticos, afora um ou outro aficcionado. Já os "filmes sérios", "filmes de autor" ou cult movies eram os únicos sobre os quais se debruçavam os críticos, muitas vezes, garantindo a capa dos cadernos culturais da mídia impressa.
Esse prestígio do cinema autoral sobre o de entretenimento é algo que decai a olhos vistos. Talvez, recentemente o experimentalismo narrativo e visual tenha se expandido mais no campo das séries audiovisuais, que passaram a ser frequentemente produzidas por canais a cabo e plataformas de streaming.
Essas novas estruturas de produção trazem também traços formais inéditos, dentre os quais, a multiplicidade de pontos de vista na criação de roteiros e abordagem de um diretor diferente a cada episódio ou temporada.
Tais considerações nos levam a uma afirmação previsível: Vazante pode ser compreendido como um filme de autor. No caso, um "autor" que é "autora". E cujo currículo traz a co-direção de filmes com um olhar atento para a questão social, como Linha de passe (2008) e a seção Loin du 16ème, parte do filme Paris, te amo (2006).
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Vamos à sinopse: o português Antonio é um senhor de escravos que vive das expedições em que negocia escravos e gado. Fincada em um lugar de acesso remoto está a sua fazenda, na qual a esposa morre durante o trabalho de parto. Essa falta que se avoluma em sua vida abre espaço para que ele vá buscar uma nova mulher: a sobrinha da falecida, que ainda é uma menina. Essa substituição da senhora é o motor de conflitos que se avizinham tanto da casa dos brancos como dos escravos. Mas há também as tensões que se estabelecem nas relações de trabalho/servidão forçada, ora de formas sutis (a questão hierárquica entre os escravos domésticos e os da lavoura), ora de forma brutal (quando intervém o capataz Jeremias).
Para a sensibilidade contemporânea, sobretudo das camadas urbanas, podemos afirmar que a vida das personagens ali apresentadas é insuportável. A pequenez do homem diante do meio, esse mote colonial em que a natureza grandiosa é tanto riqueza quanto maldição, limita a sua sociabilidade . Esse isolamento torna-se ausência de parâmetros para os limites de ação dos privilegiados. Ao homem branco, senhor de terras, só pode equivaler outro igual. Mulheres, homens empobrecidos, crianças, pessoas escravizadas estão à disposição de suas determinações.
No entanto, em Vazante, a repetição dos dias, brutal e vazia, tem um ou outro espaço para a emergência do imprevisível. O falecimento da primeira mulher e do filho do senhor; o encontro do homem escravizado fugido com Antonio, embrenhado no mato, tentando contornar sua perda; o amor de Beatriz e Virgílio (nomes que, propositalmente ou não, ecoam a Divina Comédia).
As falas e gestos comedidos, que é comum a quase todas as personagens, em conjunção com a ausência de trilha sonora contribuem para a imersão sensível na trama. O espectador é convidado a preencher as lacunas deixadas pelo silêncio, mas pontuadas pelos desejos adivinhados. Exemplar disso é a cena em que Firmina é o centro dos olhos masculinos: do mandante Jeremias, do filho Virgílio e, por fim, do seu proprietário, Antonio. À tentativa de sedução do escravo alforriado e à possessividade do menino, sobrepõe-se o desejo do branco. Basta que ele se aproxime e toda a dinâmica anterior se desfaz. Firmina o segue, e sela o destino comum das mulheres escravizadas (e também das mulheres livres) naquele regime: satisfazer os caprichos do homem proprietário.
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O fazendeiro rústico, de pés descalços, surge logo nas cenas iniciais voltando de uma expedição que é castigada pela chuva. Ele está montado, enquanto os escravos capturados seguem por uma picada enlameada, em trapos, tremendo de frio. A cena é terrível. Não há testemunhas para a violência mental e o suplício físico que vivenciam aqueles homens acorrentados. Entre eles, apenas um caminha de cabeça erguida. É aquele que será o líder da única revolta possível: a tentativa de fuga e um provável suicídio. Um homem valente, segundo a escrava Firmina, mas cujas palavras são desconhecidas, visto que não são traduzidas em nenhum momento.
Há no filme, então, a construção de algumas insubordinações ao arbítrio do senhor: o desejo de Beatriz por Virgílio, o acobertamento do encontro clandestino dos meninos por Porfírio, o sumiço de Jeremias, a morte do escravizado rebelde que nunca se submete à condição que tentam lhe impingir. Este último é visto, em uma cena, comendo terra antes de ser achado morto. Mesmo sendo hoje algo considerado impreciso, a geofagia dos escravos foi historicamente interpretada por alguns cronistas como forma de autoaniquilação e, no filme, aponta para uma forma de resistência. A única que lhe pareceu possível naquele microcosmo. Talvez comer a terra, naquela situação, simbolicamente seja a única forma de apropriar-se do lugar para onde foi levado à força.
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Aquilo que identificamos como sutilezas na estruturação do filme e das personagens, possivelmente, foi o que o qualificou para receber algumas críticas negativas, apontando certa frouxidão no endereçamento de uma questão tão sensível quanto a escravidão. Como os papeis de cada um evitam marcações estereotipadas (Antonio é um senhor relapso e ocioso quando está em casa; a menina é relutante quanto ao vantajoso status de esposa de posses; o capataz eficiente abandona subitamente seu posto...), isso abre margem para a ambiguidade. A condenação dos abusos contra negros e mulheres não se formula na tela, mas a beleza do filme cria condições suficientes para uma conscientização não-panfletária do espectador.
Resta saber se a efervescência em torno desta obra sinaliza para uma revitalização da recepção dos "filmes de arte" ou se para o anacronismo do "filme de autor". Torcemos pela predominância da primeira hipótese, ainda que Daniela Thomas pareça desconfiar dessa possibilidade, conforme comentou na entrevista citada anteriormente: "Sinto que estou me despedindo do cinema. Me parece que o cinema vai ser cada vez mais uma experiência de quem vai, por exemplo, num parque da Disney. O cinema como uma experiência temática".
Há uma diferença entre criar o ambiente ficcional opressor de Vazante e elaborar uma história contemporânea que tenha apenas personagens negras e escravizadas em situação de submissão. Neste último caso, há uma clara escolha racista. Mas ao tratar do período da escravidão não é inverossímil pontuar o assunto pelo viés da dominação, mesmo que precisemos de mais histórias sobre a resistência negra.
Será que não tomar uma posição clara e condenatória diminui o alcance de uma obra de arte? Quando nos lembramos dos processos jurídicos que autores como Baudelaire, Flaubert e Ginsberg sofreram, movidos pela ira dos conservadores que os acusavam de escrever para corromper a sociedade, encontramos aqui um eco reverso? Ou seja, os setores progressistas da sociedade podem exigir de um artista que ele se posicione a favor de sua luta, dentro de seus termos ideais? A denúncia da opressão que não pressupõe resistência eficaz seria um reforço do ensejo opresssivo?
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Assumindo aqui o lugar da fala de quem elabora este texto, mulher branca, compartilho aqui aqui minha insatisfação peculiar: Daniela Thomas, será que nós, mulheres, iremos sempre nos desculpar? Muitos ativistas identificaram sua atitude nos debates sobre seu filme como "vitimismo branco". Eu acrescento "modéstia feminina" como outro traço de sua postura. Todo o debate racial, com a sua importância inegável e urgente, não deixou muito espaço para essa outra questão: nós, mulheres, não estamos acostumadas ao protagonismo na vida pública. Podemos ser louvadas pela beleza, pela maternidade, pela doçura, pelo esforço, pela solidariedade. No entanto, nos lugares de prestígio, nossas criações artísticas e intelectuais, ainda no século XXI, levantam suspeitas de insuficiência frente ao cânone predominantemente masculino.