ANDRÉA catrópa
Filme "Coringa" - 2019
Achei curioso saber que o filme Coringa vem recebendo "acusações" tanto de mostrar uma visão de mundo informada pela esquerda, quanto pela direita. Realmente curioso. E talvez seja esse um dos grandes fascínios - não o único - da arte. A saber, a possibilidade de que o espectador projete suas aspirações naquilo que vê. No entanto, sobretudo, depois das discussões provocadas pelas vanguardas históricas, não é possível ignorar o aspecto formal da arte, que não permite que ela seja um mero repositório de conteúdos (sentimentos, percepções, opiniões) alheios a ela. O filme permite, sim, inúmeras interpretações, mas estas devem ser baseadas no que a obra nos fornece como material passível de divergência. Há aspectos que estão lá, e pronto. Um dos aspectos marcantes do filme, registrado por imagens e diálogos, é o que o Estado mínimo pode causar nas populações vulneráveis. Não nos esqueçamos de que o progressivo enfurecimento de Arthur Fleck deriva, não advém apenas dos maus tratos que sofreu aleatoriamente, mas, particularmente, do abandono social e estatal. [A partir daqui, o texto contém spoilers] Vejamos: o garoto que vivia em um orfanato, foi entregue para ser cuidado por uma mãe mentalmente instável e por um padrasto abusivo. Primeira falha, entre tantas outras, que culmina com o fim do programa que fornecia monitoramento psicoterápico e remédios controlados para um indivíduo sabidamente desequilibrado e potencialmente ameaçador.
O comediante, doente, vive, ele também, em uma sociedade adoecida. O descaso do poder público reflete-se visualmente na sujeira dos trens do metrô e das ruas. A perversidade generalizada não tem um sentido único, como é de se esperar. Se os milionários, os formadores de opinião e a classe política se unem para oprimir e para levar vantagem sobre o restante da população, a "lógica da selva" é o que impera e é reproduzida por aqueles que veem o exemplo vindo de cima. Ter poder é espezinhar o próximo, levar vantagem sobre ele: como nos mostram as cenas do espancamento de Fleck por meninos que veem no palhaço trabalhando nas ruas alguém com o flanco descoberto e que serve como saco de pancadas. O mesmo acontece na cena dos assassinatos do metrô: três rapazes bem postos, trabalhadores do mercado financeiro, ensaiam um abuso contra a moça que está no trem, até encontrarem uma alvo ainda mais fácil: o comediante que, por um distúrbio psíquico, gargalha freneticamente ao perceber a tensão no ar. Esses mesmo rapazes serão chamados pelo milionário Wayne, pai do Bruce que virá a ser arqui-inimigo do vilão Coringa (ali já em construção), em rede nacional, de exemplares cidadãos. Ou seja, aqueles que se mostram como "homens de bem" (por suas vestimentas, por frequentarem a igreja, por trabalharem em determinado local ou viverem determinado bairro) devem ser protegidos pelo Estado, apropriando-se de forma antidemocrática dos impostos que todos - até os mais pobres e marginalizados - pagam. Estado mínimo, assim, é o que protege determinadas classes e deixa outras, desamparadas. Nesse caso, para estas últimas, o poder público tem a função primordial de opressão: no filme, representada pelo encarceramento policial e pela internação psiquiátrica.
Mas, que fique claro, o filme não é panfletário e não se mostra alinhado ideologicamente a nenhum discurso específico. Antes, mostra-se como um mergulho na complexa personalidade de Fleck. Ainda que tudo o arraste para as trevas, há o desejo de se integrar, de ser "normal" e, quem sabe, feliz. Essa é a sua audácia imperdoável - Arthur Fleck não sabe ficar no seu canto. Ele entende que, por seus distúrbios e por sua vida à margem de pessoas funcionais, não tem traquejo social. Mas tenta: ao anotar o gosto do público de stand up (algo como "piadas de sexo são sempre engraçadas"), ao ensaiar um riso compassado com a plateia (ele que sempre ri na hora errada), ao sonhar com a notoriedade imaginando-se diante de um famoso apresentador de talk show carismaticamente interpretado por De Niro, ao iludir-se sobre a possibilidade de ter uma gentil namorada. E, possivelmente, dessas tentativas de se enquadrar como cidadão exemplar, o diretor Todd Phillips tira grande parte da pungência do filme. Não estamos, todos nós, buscando adequação e aprovação, mesmo quando recebemos estímulos positivos desde a infância? Isso permite que o espectador se reconheça na parte humana daquele que, em breve, será o total freak Coringa.
Talvez seja isso, também, o que causou receio quando o filme foi lançado. Após ser premiado e ovacionado entusiasticamente pela plateia no Festival de Veneza, o lançamento comercial do filme foi recebido com desconfiança e indignação por alguns pacifistas. Sem tirar a razão daqueles que temem por mais violência, sobretudo, os estadunidenses, que vivem o drama de ter uma população fortemente armada e em inegável situação de descontrole sobre esse fato, não se pode imputar ao filme apologia de comportamento antissocial. Possivelmente a confusão (ou o receio) derive da poderosa interpretação de Joaquin Phoenix, que nos leva a sentirmos empatia pelos dramas e percalços de sua vida. Contribui para isso, em parte, a caracterização física da personagem. Não só a magreza, mas a imitação dos gestos de pessoas que ele admira, nos fazendo pensar em uma criança. Ainda que Phoenix tenha evocado o gestual do ator Ray Bolger, em um musical, como sua inspiração para construir fisicamente o Coringa, há outro filme que nos mostra cenas comoventes e duras de tentativa de adequação de alguém que, na verdade, não tem nenhuma chance de se integrar socialmente: O Homem Elefante (1980), de David Lynch. A trama baseia-se na história verídica de Joseph Merrick, que nasceu com terríveis deformidades e, abandonado pela família, passa a ser explorado como atração de espetáculos de variedades na Inglaterra vitoriana. A personagem, que na história ficcional chama-se John, talvez protagonize as mais dolorosas cenas que o cinema já viu. Confundido com um monstro por sua aparência, o rapaz ensaia mesuras e gestos que possam revelar, para o mundo, sua alma gentil. É claro que esse exemplo é uma semelhança por contraste - não fosse assim, Arthur Fleck não se tornaria o temível psicopata que irá, alguns anos mais tarde, aterrorizar Gotham.
De toda forma, voltando à gênese das personagens que gravitam no filme -Coringa e, por oposição, Batman - fica o tratamento que evita o maniqueísmo. Se o jovem Bruce poderia ter se tornado um playboy despreocupado e, não, o Cavaleiro das Trevas, Fleck talvez pudesse ter se tornado um comediante querido se tivesse tido mais sorte. Mas, como no Teatro Grego, aqui o fado cruel se cumpre pelas tramas já tecidas do acaso. Ambos vítimas de uma mesma sociedade. Ambos ligados por uma tragédia que une ganância, poder e crueldade desmedidas em um mesmo cenário, a Gotham de Coringa e Batman.